De: Sophie Carquain - Histórias para virar gente grande - Ed. Versus
Aline era infinitamente curiosa. A primeira palavra que pronunciara não havia sido nem "papai" nem "mamãe", mas "por quê?". Por que as nuvens são brancas? Por que os peixinhos são vermelhos? Bem, até aí era aceitável. Mas as questões mudam com a idade, e chegou um dia em que ela se perguntou que era esse Deus de quem se falava tanto.
- Deus é como um vovô de barbas brancas. Mas não é um Papai Noel. Deus criou o mundo e nós todos. E, ele mora no céu. É isso, minha querida.
- Ah, é? E quando ele era pequeno, onde morava? E, ele deve ter ido a escola quando completou 6 anos, não é mesmo?
Mamãe suspirou bem forte:
- Minha querida, Deus jamais foi pequeno. Ele sempre foi muito grande e muito bom.Graças a Ele somos grandes e bons.
- Mas, nesse caso - disse Aline - por que me roubaram a bicicleta, domingo passado? Hein mamãe?
- É verdade., Deus não impede nem os terremotos, nem os roubos de bicicletas, nem as brigas na hora do recreio. Deus não pode impedir que os homens se matem entre si, é assim que acontece. Agora, me deixe trabalhar, por favor.
Era a primeira vez que Aline era deixada só com suas questões. Pôs-se nem no meio do quarto, com as
mãos firmemente ancoradas na cintura.
- Deus, se você existe, faça aparecer agorinha um bolo de chocolate com pedaços maciços de chocolate dentro. Agorinha!
Mas nada aconteceu. Evidentemente.
- Vamos lá, eu sou legal... Digamos... um sorvete. Um chupe-chupe... Uma coca.
Ela fechou os olhos e depois os reabriu.
- Faça um milagrezinho só, para que eu acredite em você!
Mas é claro que nem um sorvete nem uma coca descerem do céu.
No dia seguinte, na escola, Aline perguntou à Clara, ao Henrique, ao João.
- Minha mãe disse que Deus não existe. Eu acredito de Deus seja o Papai Noel - respondeu João - Os dois tem uma enorme braba branca e a gente nunca pode vê-los. Mas no dia de Natal, ele desce aqui na terra vestido com uma roupa vermelha.
Clara disse:
- Meu pai falou que há muitos e muitos Deuses! Há o deus do vento, Deus da chuva, o Deus do trigo e muitos outros.
Henrique respondeu:
- Minha mãe acha que Deus se esconde o tempo todo. Ele é invisível e, para encontrá-lo, é preciso ir muito, muito longe...no deserto, no céu ou na floresta.
Todas estas explicações pareciam ter certa solidez, o que complicava ainda mais as coisas. Aline arrumou sua mochila. " Henrique tem razão: tudo acontece nas florestas. Foi lá que a Chapeuzinho vermelho encontrou o Lobo; foi lá que Cachinho dourados encontrou os três ursinhos. Eu vou para lá para encontrar Deus." E assim, Aline entrou profundamente na floresta. Andou quilômetros e quilômetros, antes de encontrar qualquer coisa. Enfim, diante dela, viu um pardalzinho que saltitava alegremente.
- Bom dia pardal! eu estou procurando Deus - disse Aline.
- Deus é a primavera, os ninhos, as frutinhas, os vermezinhos e ainda um pouco de sol de lambuja. - disse o pardalzinho, enquanto voava para lá e para cá. - então tchau.
Aline suspirou e balançou a cabeça. Essa era mesmo uma resposta de pardal...E corajosamente retomou sua marcha.Algumas centenas de metros adiante, ela se deparou com uma lebre. Aline repetiu sua questão:
- Você teria visto Deus, por acaso?
A lebre estacou de repente e alisou seus bigodes com um ar um pouco triste:
- há alguns meses eu diria que ele estava aqui, longe das balas e dos fuzis. Mas, no domingo passado, minha mãe morreu por causa da bala de um caçador. Então, de que serve ter uma Deus, se ele permite que você seja caçado?
- É verdade - disse Aline - Nós também: temos terremotos, catástrofes, falta de alimentos...E eu também: domingo passado, fui roubada...
Mas a lebre já havia partido.
O dia começava a cair. E Aline sentia muita fome e sede. A questão continuava a provocar um desagradável buraco e muitos zigues-zagues em sua barriguinha. E foi exatamente quando estava lamentando a falta de seu quartinho tão acolhedor, ma cheio de perguntas, que ela o viu...Não era Deus, mas um pequeno espírito da floresta, dotado de uma cabeleira azul real, que produzia um suave halo na noite negra. Aline se ajoelhou para ficar mais próxima dele e falou bem baixinho, pois sabia que estes espíritos podem desaparecer num piscar de olhos, quando ficam assutados.
- ajude-me, pequeno espírito da floresta...Eu queria ver Deus, perguntar de ele nos ama ou se nem liga para nós - disse Aline - Você sabe onde posso encontrá-lo?
- Oh, oh - respondeu o pequeno espírito com sua voz miudinha - Sinto muito garota, mas é impossível ver Deus. E sabe por quê?
- Não! - respondeu Aline.
- Deus é muuuuuito tímido e se esconde um pouco por ali é por aqui. Deus está no sol, acima das árvores mais altas, é quentinho e redondo. Ele está no perfume das flores, na primavera que vem depois do inverno, na nuvem cor-de-rosa que passa pela céu, na música que é tão bela e tão triste que faz nossos olhos se encherem de lágrimas. Quando você está apaixonada e quando lê um livro formidável, que meche por dentro com você, é também Deus que está lá.
E o pequeno espírito balançou a cabeça.
- Você não encontrará- deus no barulho, nem se correr depressa demais, nem se gargalhar ruidosamente, e talvez também não se procurá-lo com excesso de intensidade. Bem, eu, quando fico sentado, assim, com o nariz ao vento, o rosto ao sol, vejo e escuto Deus, mesmo que seja com os olhos fechados.
Aline não dizia mais nada,porém pensava: "Eu também". O pequeno espírito ficou olhando para Aline e pôs um dedo em seu narizinho.
- Agora, garota, volte depressa para casa! Não tente explicar tudo nem analisar tudo. Se não, Deus se vai tão rapidamente quanto apareceu. Não somente ele é tímido, mas também não gosta muito de tantas explicações.
Aline se despediu do pequeno espírito e o agradeceu intensamente. Depois, foi-se embora com um tantinho a menos de curiosidade e uma quantidade enorme de emoção presa na garganta.
Quando chegou em casa, foi diretamente para o piano e tocou durante muito tempo, até que seus olhos se encheram de lágrimas. Era a primeira vez que isso lhe acontecia. Era um pequeno milagre, e muito melhor que um bolo de chocolate! Então era isso: para o pardal, era a primavera; para a lebre, era o silêncio.
- Para mim, Deus é a música - decretou ela.
Quando cresceu, Aline se tornou uma pianista, e assim, estranhamente, seu excesso de curiosidade diminuiu.